O bilhete ainda pesava no bolso do sobretudo de Hélvio enquanto ele cruzava a rua deserta, com o olhar atento aos reflexos distorcidos nas vitrines fechadas. "O silêncio é o que mais revela." Repetiu a frase mentalmente, como quem testa a resistência de um fio que pode romper a qualquer instante.
Parou ao lado do carro, acendeu um cigarro que não fumaria e, com o isqueiro aceso, notou algo incomum no para-brisa: uma marca circular, do tamanho exato de uma moeda antiga, desenhada na poeira acumulada. O mesmo símbolo que encontrara na parede do teatro: três círculos entrelaçados.
Não podia ser coincidência.
Sentou-se no banco do motorista, ligou o rádio apenas para ouvir o chiado da estática preencher o carro vazio. Enquanto olhava para a rua silenciosa, a cidade parecia compactar-se ao seu redor, como se os prédios se inclinassem lentamente, conspirando.
Foi então que percebeu o envelope amarelado no banco do passageiro. Não estava ali antes.
Com dedos firmes, abriu-o. Lá dentro, uma chave pequena, antiga, de um tipo que já não se usava há décadas. E junto a ela, outro bilhete, com a mesma caligrafia impecável:
"Sexto andar. Porta 607. Antes do amanhecer."
Hélvio consultou o relógio: 3h12 da manhã.
Sem hesitar, deu a partida. O motor ronronou baixo, quebrando o silêncio da madrugada. A chave entre os dedos parecia aquecer à medida que avançava pelas ruas desertas, como se o metal carregasse um pulso próprio, vivo.
Enquanto dirigia, passou a revisitar mentalmente o símbolo dos três círculos. Já o tinha visto antes , mas onde? O detalhe lhe escapava como um fio solto que não conseguia puxar.
A cidade, envolta em néon e sombras, se estendia à frente, indiferente, enquanto Hélvio acelerava. A investigação agora não era apenas sobre o arrombamento ou o símbolo era sobre ele próprio, o passado que sempre tentara enterrar e que, agora, parecia ter encontrado uma nova chave para emergir.
E, mais uma vez, a madrugada não seria suficiente para silenciar os segredos.