Mulheres camponesas viajam mais de 40 horas de ônibus para a Marcha das Margaridas, em Brasília. Elas buscam mais representatividade e melhores condições de trabalho e de vida no campo.
Só de pensar na viagem até Brasília, a agricultora e costureira Fátima Monteiro sentia frio na barriga um dia antes de embarcar para a 5ª edição da Marcha das Margaridas. “Estou muito ansiosa para chegar lá e ver aquele pessoal, aquela multidão falando uma coisa só, vai ser muito bom”, disse enquanto tramava um cachecol de tiras de malha lilás, fazendo das mãos um tear. “É para o frio do ar-condicionado”, explicou.
No domingo (9) cedo, ela e mais 37 mulheres do Polo da Borborema – articulação de entidades sindicais que atua em 14 municípios da região do Brejo Paraibano – embarcaram em um dos quatro ônibus que saíram em caravana de Campina Grande até Brasília. Fátima deixou a casa e a pequena roça à beira de uma rodovia no município de Queimadas para, durante uma semana, acompanhar camponesas em busca de direitos.
A caravana saiu de Campina Grande às 10h15, com mais de 2,1 mil quilômetros (km) pela frente até Brasília, em uma viagem que só terminou 44 horas depois. Na despedida, abraços nas companheiras que ficaram na Paraíba e muitos votos de boa sorte e coragem para as margaridas em marcha.
Na bagagem das paraibanas, a camiseta lilás, o chapéu de palha enfeitado com flores que já virou símbolo da mobilização, e o orgulho de serem conterrâneas da líder sindical Margarida Maria Alves, que inspirou a marcha. “A gente vai com uma força muito grande da Margarida daqui. A gente fica feliz porque sabe que está levando uma caravana de mulheres do estado onde começou essa luta. Margarida está viva dentro de nós, porque cada uma tem essa inspiração dela, de força, de luta e de coragem”, disse a líder sindical e integrante da coordenação executiva do polo, Maria do Céu Silva Batista de Santana.
Casos de violência
Antes de se juntar à marcha e ao movimento sindical, Fátima foi vítima de violência doméstica e aguentou por muitos anos o marido agressor. Por esse motivo, durante a caminhada em Brasília, ela também vai comemorar os nove anos da Lei Maria da Penha, completados no início de agosto.
“Eu era muito sofrida em casa e aí comecei a participar do sindicato. Quando comecei, sempre que ia às reuniões meu ex-companheiro me agredia, depois fui perdendo o medo devagarzinho”, contou.
“Cheguei um dia em casa e estava aquela zoada, botei a comida e ele quebrou o prato, uma cadeira passou pela janela e eu disse 'seja o que Deus quiser, se Ele quiser, que esse homem saia da minha vida'. Estava aperreada, chorando, angustiada, aí Deus tirou ele da minha vida, sem ser por morte, e agora vivo bem, criei meus quatro filhos”, lembrou.
No ônibus, Fátima fez questão de sentar na primeira fila, perto de antigas e novas companheiras de luta e de estrada. No caminho, frutas, água fresca, suco e sanduíches servidos por Maria do Céu, apelidada de “aerocéu”, por causa do carinhoso serviço de bordo. “Muito melhor que comida de avião”, brincou uma das margaridas.
A primeira parada da caravana, em Sumé, 120 km depois de Campina Grande, foi apenas uma pausa para esticar as pernas. Na espera para usar o banheiro, uma cena que se repetiria por todo o longo trajeto: mulheres nas filas do masculino e feminino, sem espaço para a concorrência.
Na TV do ônibus, vídeos sobre agroecologia e autonomia das mulheres filmados no Polo da Borborema para inspirar a viagem e a marcha. Nos intervalos, conversas entre as fileiras, risadas às vezes tímidas, às vezes gargalhadas, e muita troca de experiência entre as margaridas.
“Casamento é um grande formigueiro, não quero entrar em outro nunca mais”, comparou a agricultora Maria José Barbosa. “Graças a Deus, meu marido está mudando porque eu também mudei. Antes, não me deixava usar nem batom, hoje sou passarinho que voa livre”, emendou a companheira de viagem Josélia de Andrade Pereira, a mais vaidosa da turma, maquiagem sempre a postos.
Entre uma fofoca e outra, surgiam as histórias que levaram cada uma das margaridas a estar ali. Os olhos vivos e o sorriso fácil da agricultora Ligória Felipe não davam sinais do sacrifício que ela enfrentou até embarcar.
“Me programei durante 15 dias e, na véspera, faltou dinheiro, fiquei lisa porque usei o dinheiro para comprar fralda e remédio para minha neta”, contou. “O sindicato disse que não podia dar mais dinheiro, mas depois decidiu que sim. Na véspera, disse; 'vou fazer um bolo para a gente tomar café da manhã na estrada'. Quebrei as espigas de milho, preparei tudo, aí meu marido chegou embriagado e quebrou todas as lâmpadas da casa. A casa ficou no escuro, não tive como fazer [o bolo]. Eu disse a ele: 'você pode quebrar até a casa, mas eu vou'. Eu tinha que fazer, porque se eu não fizesse isso, da próxima vez, ele ia fazer coisa pior, eu tinha que vir”, completou.
A violência doméstica sentida na pele por Fátima e Ligória também preocupa as margaridas mais jovens da caravana, como a agricultora e estudante Adailma Pereira, 25 anos, que vai marchar para que as mulheres possam escolher seu lugar no mundo. “Mulher tem seu lugar e não precisa ser só do lado do marido e da casa. Lugar de uma mulher pode ser ao lado de um homem, mas como sua parceira, na sociedade, como uma pessoa, um ser humano, no lugar em que ela merece estar.”
Viagem
No fim do primeiro dia de viagem, a segunda pausa: Salgueiro, em Pernambuco. Nesse ponto, a caravana de Campina de Grande encontrou ônibus procedentes de outros estados do Nordeste para seguir viagem e atravessar em grupo as rodovias da região, conhecidas pelos altos índices de assalto. Na parada, mais filas e R$ 4 para usar o chuveiro. “Antes, o banho aqui era de graça, estão se aproveitando das margaridas”, reclamou uma das viajantes. Banho tomado, jantar e o pneu de um dos ônibus trocado, pé na estrada noite adentro.
O desconforto de dormir em uma cadeira, sem esticar pernas e coluna, era motivo de reclamação de vez em quando, quebrando o silêncio da noite escura do sertão pernambucano. Na segunda-feira (10), o café da manhã já foi na Bahia, no município de Itaberaba, na região da Chapada Diamantina. Mais uma vez, pouco banheiro para muitas mulheres. Para o desjejum, café com leite e pão trazido da Paraíba.
De volta à estrada, hora de ensaiar a canção mais famosa da marcha, o Canto das Margaridas: “Olha, Brasília está florida/ Estão chegando as decididas/ Olha, Brasília está florida/ É o querer, é o querer das Margaridas”. Microfone aberto, a cantoria seguiu com sucessos de Luiz Gonzaga, Roberto Carlos, canções de romarias e de outras lutas. “Para mudar a sociedade do jeito que a gente quer/ Participando sem medo de ser mulher”, conhecido refrão de uma canção do compositor Zé Pinto para o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Diversidade
Em meio ao cansaço de mais de 30 horas de viagem e mais duas paradas na Bahia, Maria do Céu, que participou da marcha em 2011, garante que a peleja para chegar a Brasília vale a pena. “Fiquei muito encantada porque são muitas mulheres e muitos objetivos em comum. Cada mulher, seja ela indígena ou quebradeira de coco, cada uma tem seu objetivo que é lutar pela vida, pela natureza, pela igualdade, por uma água boa, de qualidade, pela alimentação saudável. A gente encontra a diversidade de mulheres que trabalham em todos os lugares com esses objetivos.”
A mistura de mulheres da marcha também está representada na caravana paraibana, que leva agricultoras, mas também estudantes e empregadas domésticas, de 20 a 65 anos. A margarida mais experiente do grupo, Socorro Albuquerque de Araújo, fala com a tranquilidade e a firmeza de quem já viu muito da vida.
“Desde os 15 anos comecei a fazer parte desses movimentos, na igreja, na escola, nos sindicatos e nunca parei. Vou marchar em respeito à luta que Margarida teve, ela foi quem começou esse movimento, a partir disso foi que as próprias mulheres tomaram coragem e estão aqui. Desde 1983, quando ela foi assassinada, estamos nessa luta. Naquele tempo, tinha coisas que a gente tinha vontade de dizer, mas não dizia porque você arriscava sua vida e a de quem estava com você. A partir desse movimento foi que tivemos liberdade”, comparou.
Reivindicações
A disposição de Socorro animou as margaridas mais jovens do ônibus, Marta Piris Machado e Sidneia Bezerra, ambas de 20 anos. “As marchas são as mulheres saindo de casa pelos direitos delas não é? Porque as mulheres ainda não são respeitadas, não têm o devido valor. E quando várias mulheres se juntam, é melhor do que só uma. Uma não tem voz, mas muitas têm”, disse Sidneia.
Com a experiência de quem vai participar da Marcha das Margaridas pela terceira vez, a presidenta do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município de Queimadas, Maria Anunciada Flor Moraes, também motivava as companheiras de viagem, apesar do cansaço da estrada.
“É na marcha que estamos colocando nossas reivindicações como mulheres e estamos expondo as nossas experiências, nossas superações, é um espaço de debate político que para nós é gratificante”, disse a agricultora que deixou o marido e as duas filhas em casa para marchar. “Quanto mais a gente vai se distanciando, mais a saudade vai aumentando, mas depois vem o momento mais gostoso, que é o momento da volta, para chegar em casa e contar tudo o que aconteceu durante a viagem e o que vivemos em Brasília.”
No trajeto até a capital federal, o grupo deixou para trás paisagens do Brejo Paraibano, do Agreste, do Sertão, da Chapada Diamantina até chegar ao Cerrado na madrugada de terça-feira, antes de entrar em Brasília, às 6h. O ônibus das margaridas paraibanas estacionou ao lado de outras centenas que também trouxeram mulheres para a marcha.
Sob o frio da manhã que acabava de nascer, as margaridas paraibanas se juntaram para a primeira foto na capital. Fátima, do começo da história, nem precisou do cachecol tecido na véspera e o frio na barriga deu lugar à alegria de ter chegado.
Fonte:http://www.ebc.com.br/