Na rua de paralelepípedos onde vive desde antes de o asfalto alcançar a cidade, ela é só mais uma sombra discreta. Passa com sacolas de feira e passos miúdos, sem que ninguém realmente a veja. É aquela figura que os vizinhos lembram vagamente quando alguém morre: "Aquela ali ainda tá viva?" Mas nunca perguntam como ela está. Nem onde vai. Nem de onde veio.
Aos 72 anos, Hélvia carrega nos olhos um silêncio pesado, como se tudo que viveu tivesse sido enterrado junto com o tempo. Atrás da porta de madeira azul, na casa de muros altos e jardim descuidado, repousam histórias que ela jamais contou. Não por falta de quem ouça, mas porque aprendeu cedo que alguns segredos sobrevivem melhor quando esquecidos.
Foi professora de literatura. Amava palavras, mas calou-se depois do que aconteceu em 1983. Ninguém sabe o que foi só que ela pediu afastamento repentino e nunca mais voltou a dar aula. O colégio até trocou de nome, mas Hélvia continuou firme na mesma rotina: caminhar cedo, tomar chá de erva-doce e escrever cartas que nunca manda. Dizem que ele guarda tudo em uma caixa vermelha no armário da sala, lacrada com fita adesiva e um aviso à mão: "Abrir apenas quando o tempo acabar."
Algumas crianças da rua têm medo dela. Eles dizem que já viram luzes piscando em sua janela às três da manhã. Outras a acham uma bruxa, porque ela fala com gatos e nunca sorri. Mas não é medo, é mistério. E os adultos, eles simplesmente esqueceram. Não por maldade, mas porque a vida corre rápido demais para lembrar de quem não grita, não posta, não aparece.
Hélvia vive de memórias e chá. Espera o carteiro, mesmo que nunca receba nada. Sabe de tudo que acontece no bairro, mas ninguém sabe nada dela.
E talvez isso seja como ela quer.
Ou talvez seja apenas o preço de guardar tantos segredos.